Resumo Do que falam as/os Ministras/os do Supremo Tribunal Federal quando falam de gênero? A proposta deste artigo é analisar como o gênero aparece no discurso da jurisprudência da Corte Constitucional brasileira. A partir de um levantamento dos acórdãos que mencionam a palavra "gênero", 24 decisões foram encontradas e seus votos foram examinados, à luz da teoria da performatividade, para tentar responder à pergunta. Três empregos principais foram destacados e os trechos foram separados e examinados de acordo com uma categorização desse uso (sexo e gênero; gênero masculino e feminino e identidade de gênero). Ao fim, uma análise sobre a produção normativa do gênero e a produção da relação entre ideal e cópia como produção da matriz heteronormativa de gênero é identificada no discurso examinado.
Resumo: Os estudos decoloniais nos mostram que a colonialidade tem por dicotomia fundamental a divisão entre humanos e não humanos. Que processos, contudo, produzem ou preenchem essa oposição? No presente artigo buscamos discutir o sexo como produção discursiva que faz parte dos processos de distribuição de humanidade da colonialidade ocidental. Para isso, trabalha a noção de corpos falantes, como modo de romper com a ideia do corpo como tela em branco, natureza a que se imprime sentido por meio da cultura. Com isso, torna-se possível questionar o dimorfismo sexual e pensar na ampliação dos modos pelos quais atribuímos a linguagem do sexo e, assim, reconstruirmos a linguagem sobre os corpos para permitirmos mais, para podermos dizer que, apesar de só conhecermos os corpos por meio da linguagem, esses sempre a excedem.
Resumo O propósito deste trabalho é pensar como as formas de teorizar sobre o corpo e o direito podem nos permitir fazer de outro modo o humano entrar no jurídico. Para essa operação, com a articulação performatividade-decolonialidade, dois termos da Constituição podem ser utilizados para realizar a (re)discussão dessa entrada do humano: no lugar de Estado, nação ou cidadania, o povo. No lugar de sujeito ou indivíduo, a dignidade da pessoa humana. Para esse artigo, foi escolhido trabalhar este último. Vale antes ter em mente que trabalhar o humano no jurídico é oscilar entre dois pontos: a universalidade e a individualidade. Em direitos humanos e fundamentais, especialmente, a teorização toma o humano como categoria universal sob consenso para estabelecer que direitos pertenceriam a esse. Toma o universal como parâmetro para lidar com individualidades. O que acontece quando confrontamos a noção de dignidade da pessoa humana dominante na teoria constitucional brasileira com a concepção dos processos de subjetivação como um processo corporificado nos marcos de raça e gênero? É essa a pergunta que nos trará uma releitura do referido fundamento da República.
Qual a função e o papel do gênero? Qual o significado do uso desse termo nãoapenas para os movimentos feministas, mas para a produção de conhecimento? Por que usar o gênero como categoria de análise para se pensar o "humano"? Busco aqui pensar, cerca de 30 anos depois da publicação do texto cânone de Joan Scott, o que significa usar o gênero como categoria de análise quando perspectivas como a decolonialidade nos mostraram que o gênero pode ser uma forma de colonialidade e pode produzir discursos que escondem a multiplicidade da vivência das relações fora do sistemamundo da colonial modernidade. Sustento ser o gênero uma categoria de análise capaz de desestabilizar o que é ser homem ou ser mulher apenas quando percebido não como uma categoria primária, secundarizando a raça, mas como categoria junto a ela produzida.
Quando lançamos a chamada para o Dossiê que agora apresentamos, nossos propósitos envolviam a ideia de colaborar para a ampliação da discussão sobre gênero e/ou feminismo no Direito para além de discussões sobre "direitos das mulheres", "feminismo jurídico", "feminismo judiciário" e, particularmente, discussões sobre o gênero como categoria jurídica de produção, análise, interpretação e pesquisa jurídicas. Tudo isso por acreditarmos que a discussão sobre o tema não é completa se dissociada da articulação dessa categoria de análise com aquela da raça. Para isso, buscávamos produções que investissem nesses entrelaçamentos, seja de modo teórico ou por meio pesquisas empíricas, a fim de conformar publicação que pudesse reunir vozes de importantes pessoas pesquisadoras que têm atuado nessa ampliação do campo a que nos referimos.
O resultado final não poderia ser mais satisfatório e, certamente, nos é motivo de orgulho. As contribuições foram muitas e a seleção dos artigos foi, sem dúvida, um processo difícil, verdadeiro desafio que evidenciou o quanto o tema tem despertado interesse e produções acadêmicas de excelência. Com isso, esperamos que o Dossiê possa estimular novos debates e inspirar outras publicações jurídicas e interdisciplinares que apostem na articulação que aqui nos guia.
Assim, o que trazemos aqui a vocês, pessoas leitoras, é um conjunto de 26 artigos que dividimos de forma a apresentar, na primeira parte, os textos que trouxeram aportes teóricos sobre Raça e Gênero no ou para o Direito e, assim, ali estão reunidas as produções que investem em reflexões teóricas que se orientam pelas relações entre raça e gênero nos direitos humanos, na teoria feminista do direito, no constitucionalismo, na criminologia, nas políticas públicas e nas instituições jurídicas, em especial, o Ministério Público. Destacamos nessa Parte Geral o texto que abre o dossiê, Raça e essencialismo na teoria feminista do direito, da Professora Angela P. Harris, traduzido ao português, estudo que já é referência no campo e, ainda, o texto "Políticas da morte: covid-19 e os labirintos da cidade negra", das autoras convidadas, Ana Luiza Pinheiro Flauzina e Thula Rafaela De Oliveira Pires. Certamente, a divisão também foi para nós desafiadora pois algumas das pesquisas que integram a parte introdutória também se valeram de ferramentas de pesquisa empírica. Entendemos, de outro lado, que a marca principal desse conjunto de textos é o debate teórico e epistemológico que as autoras e autores nos interpelam a partir de distintas estratégias discursivas e técnicas de pesquisa.
Na segunda Parte, Incidências específicas, distribuímos os textos que se destacam pelo uso de metodologias e técnicas de pesquisa empíricas na análise de distintos âmbitos de interesse nas políticas públicas, bem como incidências concretas nas intersecções aqui tematizadas e, nesse ponto, enfatizamos que a diversidade é um marco do Dossiê. A nossa divisão obviamente supõe escolhas e explicitam a nossa forma de leitura. Conjunta, diversa, estimulante e nem sempre unânime, de um material rico que certamente vai muito além das fronteiras de quaisquer taxonomias e até mesmo da nossa lente que propõe enquadramentos e classificações. Os estudos são teoricamente sólidos e nos sugerem múltiplas reflexões epistemológicas, devemos reconhecer. As produções circulam pelo campo penal (com estudos sobre violência de gênero de modo geral e de modo específico contra mulheres indígenas e contra mulheres quilombolas, com discussões sobre feminicídio, sobre o controle penal da loucura), pelo campo das políticas públicas (com análises de diferentes políticas no enfrentamento à violência de gênero sob perspectiva interseccional), pelo direito do trabalho (tematizando questões como a reforma trabalhista, o trabalho doméstico, dentre outras) e, ainda, discussões de direito eleitoral e de direitos das pessoas com deficiência e conta, como destaque, com texto das também autoras convidadas Kerry Carrington, Melissa Bull, Gisella Lopes Gomes Pinto Ferreira e María Victoria Puyol, "Reimaging the policing of gender violence: lessons from women's police stations in Brazil and Argentina".
Antes que você pessoa leitora conheça os trabalhos que reunimos, não podemos desconsiderar, quando lançamos a chamada para o Dossiê que você agora tem em mãos, vivíamos outro momento. No momento de alegria em que publicamos um trabalho final que tanto nos é caro, vivemos um momento aflitivo em razão da pandemia da COVID-19 no mundo. Contexto que, entre tantos efeitos, aprofunda e agrava as desigualdades, vulnerabilidades, precariedades e violências nos marcos de raça, gênero e classe. Uma realidade que desperta em cada um de nós sentimentos e desejos que, como editoras e editor desse Dossiê, esta publicação possa colaborar para a afirmação da importância dos estudos de gênero e raça no campo jurídico.
Boa Leitura!
Bruno Amaral Machado
Camilla de Magalhães Gomes
Soraia Mendes
Este artigo, valendo-se dos aportes da sociologia compreensiva, coloca em perspectiva um programa brasileiro para autores de violência (PAV), buscando compreender como seu modelo teórico é interpretado e colocado em prática pelos/as profissionais que o aplicam. As categorias gênero e interssecionalidade foram mobilizadas como ferramentas analíticas, permitindo examinar o caminho entre o modelo teórico do programa e sua passagem para o contexto. Os achados, por meio da análise crítica dos discursos dos/as profissionais que aplicam referido programa, indicam estarmos perante intervenção assente numa perspectiva teórica de gênero, com objetivos pouco diretivos, usando metodologia psicoeducativa e com fortes relações com o sistema de justiça. Também se conclui que o programa mantém indefinidos o seu fim, métodos, procedimentos, e resultados esperados, favorecendo permeabilidade à ordem de gênero — patriarcal e promotora da reprodução de domínio masculino. Apesar disso, alguns/mas profissionais com formação nos estudos de gênero conseguem atuar na prevenção à violência de gênero contra as mulheres, por meio de práticas que questionam o sistema de justiça, o poder executivo do Distrito Federal e o próprio PAV, desenvolvendo ações resistentes com capacidade transformadora. A agência individual deriva para coletivos emergentes, com casos de profissionais que procuram contatos com outros/as por similitude na sua reflexão acerca de uma ordem de gênero sútil, mas que produz efeitos, a indicar potência na mobilização de grupos aparentemente marginais.